Era meio estranho quando estava naquele cansaço triste advindo da consciência nítida de que não estava no lugar certo. A cada dia me via mais infeliz. E o que realmente me interessava era o desespero quieto, contido, que as pessoas mal demonstravam. Ficava naquele exercício medonho de contradição explícito: tentando adivinhar-lhes a cor e os sabores de conflitos imaginados. A menina que levou o cão querido ao veterinário sozinha mas encontrou a porta fechada por ser cedo demais, ela batia na porta com a urgência de quem quer colar um vaso quebrado de alguém importante. E o cachorro por estar sem coleira, e talvez por isso mesmo, recusava-se a entrar no carro. O cara do ônibus que entrou, pagou a passagem e sentou no meio como se o fizesse sem pensar. Talvez estivesse ali, um ano após um relacionamento longo com uma garota que amava muito, ainda tentando esquecê-la, torcendo para que a bonita menina nova que acaba de entrar no ônibus desse um novo rumo a sua existência curta mas dolorosa. A colegial esperando o transporte escolar buscá-la na mesma esquina de sempre, no mesmo horário de sempre, mas com a cabeça ocupada demais pensando na merda da menstruação que está atrasada e que, deus a livre, não queria nem pensar nisso, já pensou se estiver grávida? Tensão no pé batendo no chão e com a saia ameaçando levantar por conta daquela ventania que ela sabia querer trazer mudanças definitivas. O desgraçado do Alex que se recusa a usar a camisinha. A pequena Daiane fazendo dezesseis anos mas pensando apenas em como os 15 foram ótimos e o quanto vai ser difícil manter o ritmo. Não conseguira dormir a noite toda pensando nisso, e também na surpresa que ela adivinhava que iriam fazê-la por causa do murmurinho que acompanhou, fingindo não perceber, a semana toda.
Era meio estranho aquele cansaço triste, a turma à sua frente esperando ele começar mais uma daquelas exposições orais que, por mais que achassem chato, respeitavam e até admiravam. Era estranho por que olhava os rostos à sua frente, e eram muitos, e ficava naquele exercício medonho que ele chamava de contradição explícito. Perguntavam-lhe coisas desconexas sobre a vida e ele se reconhecia como porta voz de coisas que seus alunos não queriam saber, não queriam viver, mas queriam negar, o que era um bom começo.
Não reconhecia em si mesmo aquela postura ordeira que agora representava, lutava contra isso, esforçando-se para não negar a essência e a semente de desacato que trazia consigo desde tempos imemoriais. Queria ser o contato da desordem no outro lado, queria fazer-se entender. Sua intenção era valiosa. Não sou um ordeiro, não sou um ordeiro: era o tipo de coisa que passava em sua cabeça naquele cansaço triste.
-Este vento...
Interrompeu o silêncio, a turma olhando-o.
-...vai mudar a vida de uma menina...é um vento de mudança. Quando ele venta, sonhos caem no chão mesmo não estando maduros. E se as portas estiverem fechadas; este vento arromba. Obrigando o comando e o desacato a jantarem juntos na mesma mesa. E ainda por cima exige bons modos.
A turma, que não entendeu nem o que disse e nem sua razão, não deixou de perceber que um brilho diferente nos olhos lhe traia aquela serenidade que o professor sempre demonstrara até ali. Comportaram-se, numa espécie de acordo unânime, como nunca fizeram antes. Então o professor busca algo automático para se segurar e disfarçar aquela corrente que não se sabia onde ia dar:
-Ana.
-presente.
-Bianca.
-presente.
-Carlos...