21.9.07

chamada.

Era meio estranho quando estava naquele cansaço triste advindo da consciência nítida de que não estava no lugar certo. A cada dia me via mais infeliz. E o que realmente me interessava era o desespero quieto, contido, que as pessoas mal demonstravam. Ficava naquele exercício medonho de contradição explícito: tentando adivinhar-lhes a cor e os sabores de conflitos imaginados. A menina que levou o cão querido ao veterinário sozinha mas encontrou a porta fechada por ser cedo demais, ela batia na porta com a urgência de quem quer colar um vaso quebrado de alguém importante. E o cachorro por estar sem coleira, e talvez por isso mesmo, recusava-se a entrar no carro. O cara do ônibus que entrou, pagou a passagem e sentou no meio como se o fizesse sem pensar. Talvez estivesse ali, um ano após um relacionamento longo com uma garota que amava muito, ainda tentando esquecê-la, torcendo para que a bonita menina nova que acaba de entrar no ônibus desse um novo rumo a sua existência curta mas dolorosa. A colegial esperando o transporte escolar buscá-la na mesma esquina de sempre, no mesmo horário de sempre, mas com a cabeça ocupada demais pensando na merda da menstruação que está atrasada e que, deus a livre, não queria nem pensar nisso, já pensou se estiver grávida? Tensão no pé batendo no chão e com a saia ameaçando levantar por conta daquela ventania que ela sabia querer trazer mudanças definitivas. O desgraçado do Alex que se recusa a usar a camisinha. A pequena Daiane fazendo dezesseis anos mas pensando apenas em como os 15 foram ótimos e o quanto vai ser difícil manter o ritmo. Não conseguira dormir a noite toda pensando nisso, e também na surpresa que ela adivinhava que iriam fazê-la por causa do murmurinho que acompanhou, fingindo não perceber, a semana toda.

Era meio estranho aquele cansaço triste, a turma à sua frente esperando ele começar mais uma daquelas exposições orais que, por mais que achassem chato, respeitavam e até admiravam. Era estranho por que olhava os rostos à sua frente, e eram muitos, e ficava naquele exercício medonho que ele chamava de contradição explícito. Perguntavam-lhe coisas desconexas sobre a vida e ele se reconhecia como porta voz de coisas que seus alunos não queriam saber, não queriam viver, mas queriam negar, o que era um bom começo.

Não reconhecia em si mesmo aquela postura ordeira que agora representava, lutava contra isso, esforçando-se para não negar a essência e a semente de desacato que trazia consigo desde tempos imemoriais. Queria ser o contato da desordem no outro lado, queria fazer-se entender. Sua intenção era valiosa. Não sou um ordeiro, não sou um ordeiro: era o tipo de coisa que passava em sua cabeça naquele cansaço triste.

-Este vento...

Interrompeu o silêncio, a turma olhando-o.

-...vai mudar a vida de uma menina...é um vento de mudança. Quando ele venta, sonhos caem no chão mesmo não estando maduros. E se as portas estiverem fechadas; este vento arromba. Obrigando o comando e o desacato a jantarem juntos na mesma mesa. E ainda por cima exige bons modos.

A turma, que não entendeu nem o que disse e nem sua razão, não deixou de perceber que um brilho diferente nos olhos lhe traia aquela serenidade que o professor sempre demonstrara até ali. Comportaram-se, numa espécie de acordo unânime, como nunca fizeram antes. Então o professor busca algo automático para se segurar e disfarçar aquela corrente que não se sabia onde ia dar:

-Ana.

-presente.

-Bianca.

-presente.

-Carlos...

7 comentários:

peka disse...

Lindo Thiago... Lindo...
Vc escreve de forma maravilhosa...
Fiquei pensando naquela parada que me disse, que eu vou mudar, em breve!
Não quero, estou satisfeita como estou... mas, sinto novos ventos... Meu semblante já pesa...

Anônimo disse...

me deixou sem palavras...
simplesmente amei

Anônimo disse...

sempre existe uma chuva de sapos*

Anônimo disse...

blz de texto e valeu a visita lá no fim. forte abraço

Ana M disse...

tua prosa, realmente, é muito boa, honey. e quantas vezes não nos valemos de ações simplesmente automáticas para nos salvar (temporariamente, não esqueçamos) de nossos vendavais interiores...
bisou

Ana M disse...

te levo o Werther, se quiser; é, realmente, fantástico.

Suzana Elvas disse...

Oi, Thiago;

Seu blog também é muito legal. Já está nos meus Favoritos (até porque você é a primeira pessoa que eu vejo que considera "A milésima segunda noite" do Fausto um livro a ter lugar cativo na mesinha de cabeceira).
Bjs

Suzana