28.6.08

O amor nascia de luzes apagadas, era quase dia e nada importava.

Era o herdeiro de um tesouro muito antigo. A história entranhara-se em mim. Eu era a história da cidade, aquela que todos queriam esquecer pois doía saber. Meus passos desvendavam os mistérios dos abismos insondáveis, meus olhares se lançavam para longe, para onde os olhares se escondem, minhas palavras publicavam verdades ao vento. A Cidade Sem Sol não gosta de ter seus segredos violados. E mesmo quando procurar é o antídoto contra o vazio suposto, a decepção pode ser maior que o cansaço. Do horizonte da Sombra encarnada enxergava-se apenas o vazio suposto de uma ausência de sol. O maior dos astros. E de todos os lados, as ruínas do mundo se entulhavam. A Cidade Sem Sol era, vejam bem, a última fronteira da humanidade partilhada. Mas a cidade conhecia o amor, dessas infelizes coincidências que não se pode chamar de outro nome que não ironia. Desmanchava-me aos pés de Leonora. O amor era uma herança ancestral, eu o havia herdado.
A amor acomete como uma doença faz. Entorpece, fere e acalma. Até a estranha simetria das torres, com a ousadia de dedos humanos apontando para deus, levavam-me a um grau mais incontido de entrega a Leonora. Não havia razão que regrasse, que pusesse termos, que auxiliasse no precário retorno a casa. Era sempre o lar dos sem lares, a cidade sem sol dos solares.

23.6.08

cidade sem sol

No limite seguro da Cidade Sem Sol era onde Isadora morava. Era meu abastecedor. Minha entidade mantedora, minha madre superiora. Ensinava-me de amor mais que todas as outras pessoas juntas. Era simplesmente uma bruxa ou algo assim. Ela me olhava e eu fazia o que quisesse. Seus ritos de amores e drogas. Suas bebidas exóticas, sua dança suntuosa, seus gestos incalculáveis. Seus lábios de labirintos abertos. Era a coisa mais honesta que vivi em toda minha vida. Nem uma palavra prometida. Poucas palavras trocadas. Éramos duas pessoas cientes do fim do mundo próximo, cientes que não seríamos da turma dos escolhidos. Nos divertiríamos até no inferno, talvez. A casa de Isadora pertencia a muitos. O perigo apenas desfila modestamente como uma foto inofensiva em uma cômoda. Perigo era viver. Viver sem passar pela coisas, sem tê-las experimentado. Já era tenebroso todo aquele ritual orgiástico ao deus grana, vender até a capacidade de sonhar, para poder transformar os sonhos em sonhos de consumo. Eles dão preços aos sonhos aqui na Cidade Sem Sol. Nunca vi lugar tão perigoso para viver.